quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O trabalho e o adoecer como forma inevitável de "viver"

O HOMEM E SEU TRABALHO, FORMA DE VIVER OU MORRER




RESUMO:  Este artigo procurará investigar as relações entre o homem e seu trabalho e as doenças que o cercam, buscando estabelecer a correlação entre realização profissional e realizações pessoais, perpassando os objetivos explícitos da classe patronal e os resultados desse processo no organismo humano. 
PALAVRAS-CHAVE: Produtividade, carga psíquica, jornada de trabalho, sociedade capitalista.

ABSTRACT: ABSTRACT: This article will seek to investigate the relationship between the man and his work and the diseases that surround him, seeking to establish the correlation between job satisfaction and personal achievements, passing the explicit objectives the employer class and the results of this process in the human body.
KEYWORDS: Productivity, mental load, working hours, capitalist society

Produto: " Resultado da transformação de matéria-prima mais trabalho. Algo que não existiria sem imaginação e trabalho humanos " ( Sampaio, Hitomi& Codo, 1990). 
Com esta definição da palavra quero observar que o homem se coloca inteiro naquilo que produz, que de certa forma também é o objeto do seu desejo. Quando esse objeto de desejo não se confunde com o produto do qual está sendo artífice, surgem as diversas formas de entrave no processo produtivo, e  via-de-regra o resultado é um produto que, se não é pleno de defeitos, promove em quem o produziu algum mal-estar.
O que nos fadiga? o que nos causa desequilíbrio a ponto de comprometer nossas funções no exercício da profissão? Podemos envolver ou descartar completamente o nosso  trabalho como fator desencadeante ou importante nos eventos psicossomáticos? Para obter a resposta a essa inquietação podemos considerar dois lados da mesma moeda: os benefícios ou malefícios do ato de trabalhar.
Segundo Dejours ( 1980), o autoritarismo no trabalho possibilita um aumento da carga psíquica, que pode acabar gerando a fadiga, e dependendo da estrutura mental do trabalhador, isto pode desembocar em  transtornos capazes de afastar o trabalhador do  seu ofício, em prejuízo de ambas as partes: o funcionário e o seu patrão. Resta-nos então compreender porque uns adoecem, outros não. Uns exercem atividades altamente complexas e desafiadoras, e permanecem gozando de boa saúde mental e física; outros, exercem funções  simples como passar o turno inteiro apertando parafusos,  enchendo vazilhames, colando rótulos, etc, e no final do período apresentam-se exaustos, infelizes, sem ânimo para muitas coisas que em outras ocasiões lhes dariam prazer. Será que é possível trabalhar sem apresentar sintomas de doenças diretamente observáveis?

 "Se correr, o bicho pega..."

Por um lado, o trabalho pode proporcionar ao ser humano uma troca com o coletivo. Ele se transforma em um ser produtivo, e ao mesmo tempo, transforma a matéria-prima. Podemos então, nesse contexto, compreender que o trabalho é uma atividade que envolve o homem como um todo. Ele imprime o produto e é impresso nele. Ocorre que o outro lado  da moeda chega a ser perverso, no sentido de que subverte a essência do ser humano, que é seu trabalho, como meio de subsistência, de sobrevivencia, no sentido literal de sobreviver à morte, às situações constrangedoras, que lhe arrebatam a dignidade humana. 
Comparando tal situação com o trabalho produtivo, no sentido de construção das realizações do ser humano, que nos reporta à ação criativa e transformadora do homem, podemos perceber esse trabalho concebido no seio da sociedade capitalista como um processo de destruição, alienação, negação de si mesmo; único meio de vida, aquele do qual o homem honrado não pode fugir; aquele que é sentido como castigo, principalmernte no imaginário popular, que reproduz com excelência o dito "primeiro o dever, depois o prazer". Logicamente não se passa na mente dessas pessoas a ideia de que as duas coisas podem perfeitamente andar de mãos dadas, lado a lado.
Não é, portanto, difícil perceber uma proposta meio que sádica da classe patronal, ao firmar um acordo tácito quando emprega um(a) chefe de família que se encontra à beira da miséria: "eu tiro você dessa situação, e você me dá seu suor, sangue e lágrimas". O chefe de família, destituído de sua dignidade, limita-se  simplesmente a baixar a cabeça, como uma anuencia desse acordo, pois não tem outra saída.
Tanto melhor se a atividade gera prazer no trabalhador, que poderá sentir-se gratificado no final do mês, apesar de o salário quase sempre não ser suficiente para o seu orçamento doméstico e pessoal. Em alguns casos o meio de vida se transforma em risco de morte em vida, se considerarmos do ponto de vista da subjetividade humana. Depoimentos confirmam essa impressão, quando operárias relatam que elas não tinham tempo nem para pensar. Quando começavam a cantar para quebrar a rotina e diminuir o cansaço e para amenizar a jornada diária, vinha o  encarregado proibir, sob a alegação de que com o canto elas poderiam se distrair e duiminuir o ritmo. 
Nosso corpo não é uma máquina de produção industrial
Diminuir o ritmo: pecado grave em uma seção, seja ela automatizada ou não. Nesse tipo de trabalho não se pode lograr sentir-se humano. São máquinas, durante a jornada de trabalho, depois, podem ficar à vontade, para se transformar em artistas, prontos para fazer malabarismos ou mágicas com o salário. Eis aqui a pergunta: como gozar de saúde, diante desse quadro? O que o ser humano espera quando se põe a trabalhar durante oito horas diárias em troca de  um pagamento quase sempre insuficiente para dar conta de suas despesas? 
A resposta é NADA.  Ele não pode esperar nada, além do óbvio. Ele não tem condições de abstrair, conjecturar, filosofar, ponderar, argumentar. Ele só  tem condições de se ajoelhar e dar Graças a Deus pelo emprego escorchante. Ele só tem condições de  fazer o "jogo do contente", de Pollyana Moça. E adoecer.  
Esperar nada nesse caso já é um passo para o adoecimento, pois com o tempo vai sendo criada uma lacuna no campo de suas representações fantasmáticas de realização pessoal. Esperar nada, nesse caso, já é um processo de morrer, pois não há lugar para as suas pulsões e suas motivações se reduzem ao recebimento do salário, que nem sempre consegue matar a fome, realidade que não condiz com seu desejo.  Assim o ser humano trabalhador, proletário, funcionário assalariado pouco a pouco se degrada, sem disto se dar conta.
O trabalho e as realizações pessoais
Pode parecer exagêro, mas observando atentamente todas as nuances do processo de trabalho, chegaremos simplesmente à conclusão de que a atividade profissional, se for livremente escolhida, com espontaneidade para estabelecer normas e critérios de organização, pode chegar` mesmo a ser orgásmica, dado o relaxamento e equilíbrio, ao final da tarefa ou da jornada de trabalho.  Em contraponto, quando o trabalho tem as marcas da tirania da classe patronal capitalista, onde a produtividade é o pano de fundo para toda sorte de autoritarismo  e de desrespeito  à condição, natureza e dignidade humana, ele pode vir a se constituir num manancial de sintomas no decorrer do tempo, qual um indivíduo que nunca obtém gratificação sexual, que pratica sexo por obrigação, sempre com a mesma pessoa, sempre de forma e frequência pré-determinadas pelas convenções sociais e religiosas, o que pode desencadear uma série de desajustes, dependendo da estrutura mental de cada indivíduo. Assim é, em relação ao trabalho obrigatório, escolhido e organizado pelo outro,  chefe ou o patrão. 
Para Dejours (1992), ter saúde é ter meio de traçar um caminho pessoal em busca do seu benefício, do seu bem-estar físico, psíquico e social.  Quando o trabalho é prazeroso, apesar das condições impostas, essa integração faz-se possível, conforme depõe a operária de uma pequena metalúrgica:
" Eu gostava demais da minha profissão, colocar a peça no torno, fabricá-la dentro das medidas pedidas, e depois ela tava ali, pronta, eu acho uma beleza. A gente tinha aquele prazer, saber que foi a gente que conseguiu fazer aquela peça..." (CLEUZA, in Neves, 1992).
Se colocar lona, vira circo (ou: "chame o ladrão")
Podemos facilmente visualizar a faceta cruel do trabalho "taylor/fordista"no filme Mundo Moderno, estrelado por Charles Chaplin, o Carlitos. ele encarna o operário de uma fábrica de montagem (provavelmente de automóveis). No seu posto de trabalho ele é responsável por pequenas peças que chegam à sua frente, enfileiradas, às dezenas, quase que simultaneamente. ele tem apenas alguns segundos para atuar em cada uma delas. Quando ocorre algum imprevisto (tem que se coçar ou algo parecido), a peça segue em frente sem ter sido tocada por ele, e o pobre se consome diante do conflito que se instala: atuar na peça que passou,a trasando todas as outras, já amontoadas, ou deixar passar? a peça teria que ser transformada, mas podemos perceber que ele é que se transforma, em uma imagem de desespero, frustração e medo. Sua imagem é a personificação de  " e-agora-o-que-é-que-eu-faço?"
No cinema todos riem, pela veia artística impagável de Carlitos, mas o que ele estava fazendo naquele momento era uma grave denúncia  das condições de trabalho de quem tinha ( e ainda tem) que se submeter ao poder do capital, numa época de supremacia dos países europeus diante da revolução industrial.
O homem no trabalho e as respostas somáticas
Confrontando as duas situações do trabalho - a operária que se realiza na peça que produz e a da personagem de Carlitos onde não se percebe prazer, mas desespêro e dor, podemos ver que o trabalho tanto pode significar morrer - destruir-se, construir sua ressignificação sobre a frustração, sofrimento, adoecimento; somatizar permanentemente - quanto viver,  ou seja, construir-se,  se projetar no seu produto com satisfação, obter prazer nas suas ações durante a jornada de trabalho.  Depende de quem é o sujeito que está por trás da ação, e de que ação é esta:  se é parte de um processo de construção subjetiva ou de construção objetiva do enriquecimento (quase ilícito) de uma minoria que detém o capital, o poder, a mola-mestra , pivô de tantos dissabores, mas que se constitui num mal, ainda necessário. O trabalho pode produzir riqueza, dignidade, saúde, auto-realização, mas também pode  produzir dores,  doença, baixa auto-estima,  morte. 
 Algumas definições de trabalho, de acordo com as exigências ou trocas de que ele é capaz: 
TRABALHO FATIGANTE: Resultado da falta de descarga das energias recorrentes, geralmente  nas situações de trabalho fragmentado, ao melhor estilo taylor-fordista. Ocorre quando não há liberdade de escolha ou organização. Ex.: funcionários que,  mesmo sem a atividade a ser realizada, são obrigados a fingir que estão trabalhando, quando o chefe da repartição aparece de repente. Trabalho em que o funcionário se sente uma peça, não um ser humano.
TRABALHO EQUILIBRANTE: Trabalho livremente escolhido e organizado, onde as vias de descarga que os mecanismos de defesa utilizam são aquelas adequadas à necessidade. Quando a tarefa está concluída, o artífice está relaxado,  mais equilibrado, do que quando  a iniciou. Ex.: artista, pesquisador, cirurgião, psicólogo, satisfeitos com o trabalho. Os pilotos de caça realizam atividade  altamente perigosa, com desconfortos para o corpo, exigência de perfeição máxima, constante coragem e força de vontade. ao final da "tarefa" os pilotos se apresentam saudáveis física e mentalmente. Assim, vemos que a carga psíquica "negativa" faz parte do prazer ao ponto de assegurar equilíbrio e saúde de boa qualidade (Dejours, 1980).



"O trabalho não é apenas um teatro aberto ao investimento subjetivo, ele é também um espaço de construção do sentido, e portanto, da conquista da identidade, da continuidade e da historicização do sujeito" (Dejours, 1990)